Inocência ferida
uma investigação acerca das violências que incidem sobre os corpos de bebês e crianças pequenas nas creches
Palavras-chave:
Violência, Corpo, Crianças, CrecheResumo
Introdução: As crianças e suas múltiplas infâncias sempre tocaram o coração das autoras deste Resumo Expandido de forma profunda. Desde que começou a estudar Pedagogia, a primeira autora entendeu que essa etapa da vida é decisiva para os aprendizados e o desenvolvimento humano, e as experiências vividas nesta fase da vida impactam o porvir. É período de começos: de vínculos, emoções, afetos, descobertas, expressões. Justamente por isso as crianças deveriam ser protegidas contra todos os tipos de violência. Como espaço institucional educativo voltado à primeira infância, a creche deve ser lugar de cuidado, educação, brincadeira, relações de confiança e de afeto. A inquietação desta pesquisa nasceu de observações realizadas em estágios, de situações nas quais a creche, entretanto, se torna palco de violências silenciosas e naturalizadas, que muitas vezes passam despercebidas até por quem as comete. A complexidade desse fenômeno reside não apenas na ocorrência dos atos violentos em si, mas na naturalização, aceitação e, em alguns casos, no incentivo a tais comportamentos. A investigação foi realizada no âmbito do programa de Iniciação Científica e Tecnológica Sem Remuneração (ICTSR) pelo Edital 002/2022 da Pró-Reitoria de Pesquisa (ProPq) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no período de janeiro a dezembro de 2024, tendo por objeto os tipos de violência incididas sobre os corpos de bebês e crianças pequenas na escola são naturalizadas, aceitas e, em certos casos, até incentivadas. O relatório final foi entregue em janeiro de 2025 com o título “Inocência ferida: uma investigação acerca das violências incididas sobre os corpos de bebês e crianças pequenas nas creches” e aprovado em fevereiro do mesmo ano. A estudante está cursando o último ano, dando continuidade à pesquisa em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), bem como em debates no contexto do Grupo de Pesquisa sobre Infância, Arte e Práticas Educativas (GIAPE). Objetivo: O objetivo principal da pesquisa foi investigar os motivos pelos quais diferentes tipos de violência incididas sobre os corpos de bebês e crianças pequenas na creche são naturalizadas, aceitas e, em certos casos, até incentivadas. A pesquisa buscou compreender as dinâmicas implícitas que contribuem para tolerância dessas práticas. Em complemento ao objetivo principal e buscando compreender as dinâmicas implícitas que contribuem para tolerância dessas práticas, os seguintes objetivos específicos foram delineados: Identificar os diferentes tipos de violência que incidem sobre o corpo de bebês e crianças pequenas, abrangendo aspectos físicos, psicológicos e de negligência; compreender os motivos que levam à naturalização de violências por parte de profissionais da Educação da creche contra o bebê e a criança pequena, explorando fatores sociais, culturais e institucionais que contribuem para essa aceitação; Investigar as percepções de profissionais da Educação em creches sobre práticas violentas (atitudes, crenças e barreiras) que podem contribuir para a aceitação ou normalização de tais comportamentos. Unindo objetivos gerais e específicos, a pesquisa almeja produzir conhecimentos que contribuam para a conscientização de profissionais da Educação e todos os envolvidos no processo de desenvolvimento integral e legitimação da criança enquanto sujeito histórico e de direitos. Metodologia: Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa do tipo bibliográfica (Malheiros, 2011). O levantamento bibliográfico foi realizado em três diferentes bases de dados com palavras-chave escolhidas durante reuniões de orientação. Foram incluídos em tabelas os materiais que traziam referencial histórico e os que abordavam as violências incididas sobre os corpos de bebês e crianças pequenas. A faixa etária estabelecida restringiu consideravelmente a quantidade de materiais, visto que a maior parte do conteúdo se referia à terceira infância. O primeiro banco de dados acessado foi o Sistema Integrado de Bibliotecas da UFSCar, no endereço eletrônico https://www.pergamum.ufscar.br. No repositório da produção científica e intelectual da Unicamp, encontrado (https://repositorio.unicamp.br/) foram encontrados poucos resultados. Foi acessada também a Scientific Eletronic Library Online (SciELO), encontrada no endereço eletrônico https://www.scielo.org Foram selecionados 13 títulos por meio da revisão de literatura que se somaram a outras referências, indicadas pela orientadora e estudadas em atividades curriculares do curso. Como elemento motivador do trabalho, esteve o livro ‘Vigiar e Punir’ de Michel Foucault (1987), estudado no contexto da disciplina “Educação, Corpo e Movimento”, do curso de Pedagogia, no qual conheci pela primeira vez sobre modos diversos de reprimir, sobre a teoria da punição “gentil”, a utilização da disciplina para construir relações de poder desiguais. Suas reflexões aguçaram as inquietações em relação ao tema e serviram como base para desenvolvimento do projeto. Ao longo do processo a leitura de outros autores contribuiu, como a teoria de violência simbólica de Bourdieu. Também foram estudados documentos como ‘Critérios para um Atendimento em Creches que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças’ proposto pelo MEC (Campos; Rosemberg, 1995), o Estatuto da Criança e do Adolescente, as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil e a Declaração dos direitos das crianças proposto pela UNICEF em 1959. Em relação às disciplinas da graduação que foram fundamentais para as reflexões estabelecidas, estão “Educação, Corpo e Movimento” e “Metodologia do Ensino de Arte”, ambas ministradas pela professora orientadora da pesquisa, bem como as experiências de estágio obrigatório em Educação Infantil. Resultados e Discussão: Como é possível propor uma pedagogia que rompa com lógicas violentas e adultocêntricas? Observei a incidência de diferentes formas de violência simbólica e institucional no cotidiano das creches, especialmente contra os corpos vulneráveis de bebês e crianças pequenas. A pesquisa nasce do incômodo causado por esta situação e da vontade de dar voz ao que muitas crianças não conseguem expressar, denunciando práticas que, mesmo sem deixar marcas no corpo, marcam a alma. A investigação propôs-se a analisar como essas violências se manifestam nas creches e de que forma são legitimadas por discursos, atitudes e estruturas históricas, sociais e educacionais. Além disso, torna-se importante compreender como essas violências não apenas ocorrem, mas são muitas vezes incorporadas ao cotidiano escolar como formas "normais" de disciplinamento. Há um risco constante de banalização de práticas autoritárias que, embora sutis, exercem forte impacto sobre a subjetividade infantil. O estudo identificou diversas formas de violência simbólica e psicológica presentes nas creches, como gritos, punições, imposições disciplinares, exclusão do brincar e desconsideração das necessidades emocionais e expressivas das crianças. Foram observadas também práticas como chantagens, intimidações verbais, ameaças silenciosas e desatenção às necessidades básicas como alimentação e higiene. Essas práticas, muitas vezes legitimadas e justificadas pelo estresse docente, pela estrutura escolar e por heranças histórico-culturais adultocêntricas, são internalizadas como estratégias educativas aceitáveis. A violência simbólica emerge, assim, como um reflexo das relações de poder naturalizadas e reproduzidas dentro das instituições educativas. As estruturas físicas e organizacionais da escola também foram analisadas como parte integrante dessas práticas, desde a disposição das salas até a rigidez dos cronogramas escolares. Outro ponto de destaque foi o peso do discurso meritocrático e da cultura da obediência, que valoriza crianças caladas, enfileiradas e submissas em detrimento da escuta, da criatividade e da livre expressão. Os(As) educadores(as), muitas vezes sobrecarregados(as) e sem suporte institucional, acabam reproduzindo comportamentos punitivos como forma de controle e sobrevivência. Segundo Almeida (2021) as justificativas de demandas são atemporais, obscuras, com uma prática corriqueira e legitimada por um conjunto de elementos que sustentam suas estruturas e a mantém como instrumento indispensável à garantia das relações de poder que se instalam por entre os sujeitos que compõem a realidade institucional educacional, mantendo hegemonias e perpetuando sistemas. O conceito de violência simbólica, proposto por Pierre Bourdieu, serviu de pilar central para análise das práticas identificadas. A violência verbal, por meio de palavras negativas com o intuito de humilhar, manipular e ameaçar e a violência psicológica, quando se usa de comportamentos não físicos que desestabilizam emocionalmente a criança. Todos esses são exemplos de violências simbólicas, que segundo Bourdieu (2007), são violências não físicas respaldadas pelas relações de poder. Conforme Fonseca (2009), a disciplina busca reprimir movimentos para produzir corpos submissos para que o corpo seja útil, produtivo; diminui suas forças para controlá-lo, para sujeitá-lo. Reduz sua força política e maximiza sua força útil. Rennó (2009) afirma que se parte do princípio de que se pune para educar, do uso do castigo para conduzir à civilidade. Essa forma de conceber a educação tem como viés norteador primeiramente a necessidade de disciplinar para educar, instruir e civilizar. Conclusão: As violências contra bebês e crianças pequenas nas creches são multifacetadas, frequentemente invisíveis e historicamente naturalizadas. O enfrentamento dessas práticas exige a valorização e formação crítica dos profissionais da educação, a promoção de ambientes realmente acolhedores e a desconstrução de práticas punitivistas enraizadas no cotidiano escolar. A pesquisa aponta a urgência de um olhar mais sensível, consciente e comprometido com o desenvolvimento integral das infâncias. A desconstrução do adultocentrismo e a criação de práticas pedagógicas fundamentadas no respeito e na escuta ativa são caminhos necessários para transformar a escola em um espaço verdadeiramente educativo. O trabalho aponta ainda para a necessidade de políticas públicas que garantam melhores condições de trabalho aos profissionais da educação, bem como formação continuada e suporte emocional. Essa reflexão amplia os horizontes de atuação pedagógica e reforça a importância de se pensar em uma educação que respeite a criança como sujeito histórico, de direitos e de expressão, capaz de construir suas relações de forma autônoma, segura e significativa.
Referências
ALMEIDA, Nathália Suppino Ribeiro de. A produção da (in)disciplina escolar: normalização, subjetivação e controle. 2021. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/14956. Acesso em: 27 abr. 2025.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
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RENNÓ, Cláudia Martins Ribeiro. Produção de corpos dóceis: uma análise das práticas de disciplinamento e vigilância na escola. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade de Sorocaba, Sorocaba, SP, 2009. Disponível em: https://repositorio.uniso.br/handle/uniso/450 Acesso em: 14 jun.2024.