Ecos do silêncio e injustiça climática

vozes negligenciadas das mulheres de Mariana

Autores

Palavras-chave:

Desigualdade de gênero, Sustentabilidade, Rompimento de barragem

Resumo

Introdução: As mudanças ambientais intensificadas revelam, além da crise climática, o papel das vulnerabilidades socioambientais na acentuação dos impactos. Como demonstra Ioris (2009), as assimetrias socioeconômicas intensificam os impactos ambientais, demandando uma compreensão crítica do conceito de “desastre ambiental” (Ioris, 2009). Este evoluiu paralelamente às transformações globais do século XX, particularmente da década de 1960, quando os efeitos do modelo hegemônico de crescimento econômico tornaram-se incontornáveis (Pott; Estrela, 2017). Entre as principais mudanças, as autoras destacam o papel das conferências internacionais realizadas para discutir novos modelos de desenvolvimento econômico, o que ficou conhecido como desenvolvimento sustentável. Paralelamente a essa evolução, anos 1980 viram consolidar-se o movimento de Justiça Ambiental (Bullard, 2000). Essa mobilização foi decisiva para evidenciar a correlação estrutural entre vulnerabilidades sociais - com destaque para as desigualdades raciais - e degradação ambiental, estabelecendo um novo paradigma analítico para o fenômeno (Louback; Lima, 2022). Nesse sentido, o conceito de Justiça Ambiental oferece instrumentos teóricos fundamentais para compreender as intersecções que estimulam a desproporcionalidade dos impactos de desastres ambientais sobre grupos minoritários. Em um contexto de desigualdades estruturais historicamente constituídas, as mulheres configuram um grupo minoritário cujas vulnerabilidades são institucionalizadas por normas sociais, práticas culturais, determinações legislativas e econômicas. Essa herança de fatores históricos e as atuais dinâmicas contemporâneas marginalizam e restringem o acesso feminino a uma vasta gama de recursos e oportunidades. Como consequência direta desse processo sistêmico de marginalização, as mulheres se encontram desproporcionalmente expostas a diversas formas de violência, discriminação e exclusão, intensificando as disparidades preexistentes. Nesse contexto, as desigualdades de gênero atuam como catalisadores da vulnerabilidade feminina frente aos impactos das mudanças ambientais (Barcellos, 2013). A dificuldade de reestabelecer a subsistência após deslocamentos forçados, a perda de fonte de renda estável, a sobrecarga da dupla jornada potencializada pelas pressões ambientais e a necessidade de lidar com as demandas da saúde familiar, a constante ameaça de abusos psicológicos e sexuais são desafios acrescidos à gravidade dos impactos ambientais. Esse conjunto de problemáticas, somado aos traumas dos desastres ambientais, agrava a capacidade de enfrentamento da comunidade feminina. A ausência de representação feminina na governança climática (apenas 1/3 dos cargos decisórios globais) perpetua essa vulnerabilidade (Turquet et al., 2023).

Este estudo tem como objetivo analisar o conflito hidropolítico decorrente do rompimento da Barragem de Fundão (Mariana/MG, novembro de 2015), com foco específico na interseção entre vulnerabilidades socioambientais e impactos de gênero. Por meio de um estudo de caso, busca-se compreender: (1) Como as assimetrias pré-existentes agravaram os efeitos do desastre nas mulheres atingidas; (2) De que forma a resposta institucional reproduziu ou mitigou essas desigualdades. Para analisar este fenômeno complexo e multidimensional, adotou-se uma metodologia baseada em revisão da literatura acadêmica e análise documental de relatórios de fontes oficiais como ONU Mulheres, Fundação Getúlio Vargas (FGV), Justiça Global, e artigos científicos. Essa abordagem buscou garantir a adequação e a pertinência do exame do conflito, explorando suas diversas dimensões a partir de informações qualificadas.

A tarde de quinta-feira (05 de novembro de 2015) foi surpreendida pelo rompimento da barragem Fundão, propriedade da mineradora Samarco – controlada pela Vale e pela empresa anglo-australiana BHP Billiton –. De imediato, o rompimento fez uma vítima, um fiscal que, ao ver o desabamento, teve uma parada cardíaca (Cherem, 2015). Esse desastre é tido como o maior rompimento do mundo envolvendo barragens de rejeitos de mineração (Brasil, 2024). A lama, descrita pelos representantes legais da mineradora como “areia que não apresenta nenhum elemento químico à saúde” (UOL, 2015), era uma densa e espessa correnteza de terra e areia com compostos de ferro que não só prejudicaram a posterior captação das águas do Rio Doce, bem como a perda da biodiversidade da biota típica da região, conforme afirmado pelo presidente do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano:

A maior parte dos danos causados pelo rompimento da barragem serão permanentes. Os 60 bilhões de rejeitos de minério de ferro que formaram o mar de lama mudou o ecossistema por onde passou. O que existia antes desta tragédia não existirá mais. Como a lama é muito densa ela faz uma espécie de pavimentação por onde passa destruindo a biota. Os impactos são de uma magnitude absurda (CBH Rio das Velhas, 2015).

O rompimento da barragem atingiu igualmente a Barragem de Santarém e, numa onda de lama devastadora, seguiu por cerca de 91 quilômetros ao longo do Rio Gualaxo do Norte o estendendo seu impacto por mais de 600 quilômetros do Rio Doce e desembocando no Oceano Atlântico em 21 de novembro. Essa tragédia afetou, além do distrito de Bento Rodrigues em Mariana (MG) – local da Barragem Fundão –, trinta e cinco cidades mineiras e três espírito-santenses comprometendo o abastecimento e a arrecadação dos municípios em razão da interrupção das atividades econômicas dependentes do rio (CNDH, 2017). A tragédia teve impactos imensuráveis não somente em termos ambientais e ecológicos, provocando a morte de mais de 11 toneladas de peixes, ameaçando a extinção de espécies de fauna e flora, gerando prejuízos ao patrimônio, às atividades pesqueiras e agropecuárias e turísticas da região (CNDH, 2017), também foi responsável por ocasionar danos humanos irreparáveis. De acordo com o relatório do governo estadual de minas gerais estima-se que cerca de mais de 311 mil pessoas foram atingidas pelos impactos advindos do rompimento em termos macrorregionais (CNDH, 2017), de acordo com a ONG Justiça Global estima-se que aproximadamente 3,2 milhões de pessoas habitavam a bacia do Rio Doce e foram afetadas pelo rompimento da barragem (Justiça Global, 2016). Diante desse trágico cenário, faz-se importante analisar as proporções dos impactos quando percebidos por diferentes grupos sociais. Dentre os atingidos, as mulheres representavam 49% dos atingidos, entretanto, relataram desproporcionalidade nos impactos e posteriormente no tratamento recebido pelos representantes dos envolvidos (DPES, 2019). Tomando a vulnerabilidade como conceito complementar ao de risco e expondo a desigualdade de gênero enquanto elemento catalisador desses impactos, as noções de interseccionalidade não pode ser ignorada no que tange a tragédia em questão, a magnitude do rompimento foi assustadora e seus efeitos perduram e perdurarão por longos anos na vida dos atingidos, portanto, faz-se importante questionar de que forma o rompimento da barragem de Mariana, ao intensificar a violência de gênero e a sobrecarga de trabalho de cuidado, comprometeu a segurança, a saúde e a capacidade de reconstrução das mulheres atingidas?. Resultados: A relação entre mudanças climáticas e desigualdade de gênero expõe riscos significativos para mulheres e meninas, que têm 25% mais chances de extrema pobreza e sofrem sobrecarga de trabalho doméstico não remunerado (IBP, 2023). Projeções da ONU indicam que, até 2050, mais de 158 milhões de mulheres e meninas podem viver na pobreza e cerca de 236 milhões em insegurança alimentar (Turquet et al., 2023). O rompimento da barragem de Mariana expôs diversas formas de violência contra as mulheres atingidas, especialmente aquelas em situação de pobreza, muitas vezes negras e chefes de família, que já vivenciavam marginalização socioeconômica e maior vulnerabilidade a desastres (FGV, 2022). Essa tragédia intensificou a invisibilidade do trabalho feminino, como na agricultura e colheita, onde apesar da significativa presença de mulheres, seus ofícios foram desvalorizados e não reconhecidos para fins de reparação, além disso, o trabalho das atingidas por muitas vezes foi interpretado como “ajuda”:

[...] Eles não querem reconhecer a mulher como trabalhadora. Eles não acreditam na capacidade da mulher pescar, na capacidade da mulher colher seu próprio fruto, tá lá plantando a sua própria plantação, eles não acreditam. Eu vejo na cara deles, que eles não querem reconhecer as mulheres (FGV, 2022, p. 40)

O Projeto Rio Doce (FGV, 2022) revela que muitas mulheres atingidas não foram procuradas e sequer cadastradas. O relatório sobre a situação dessas mulheres apontou que 32,43% das reclamações na ouvidoria da Fundação Renova eram sobre problemas no cadastro, 25,09% no acesso ao Auxílio Financeiro Emergencial e 21,5% nas indenizações (FGV, 2019, p. 51).

[...] quando tudo aconteceu a gente achava que quem tinha que ser reparado era o pescador, que foi a primeira classe a ser atingida, a gente achava que nós agricultores não teríamos direito. Nós mulheres nunca fomos procuradas por nenhuma instituição, nem por advogados, nem mesmo pela Renova, pra tá recebendo esse tipo de informação, ninguém pra dizer se tínhamos ou não direitos (FGV, 2022, p. 41–42).

Embora representassem 49,3% das pessoas atingidas, as mulheres eram apenas 39% das pessoas presentes para o cadastramento, contraponto 61% de homens. Cabe ressaltar que, ainda que tenham sido reconhecidas a maioria recebia o valor indenizatório menor do que o dos homens atingidos (FGV, 2019). Além dos impactos econômicos, as mulheres sofrem com a sobrecarga da dupla jornada que de forma sutil as transformam em rede de apoio involuntária em um contexto de atipicidade do desastre, demandando uma integral disponibilidade de suporte emocional e afetiva, exigindo um alto gasto de energia delas (FGV, 2022). Paralelo à sobrecarga serviçal há a gestão alimentícia do lar que recai sobre a responsabilidade da mulher de providenciar o preparo do alimento para toda a família que em um contexto de escassez favorece a insegurança alimentar nessas comunidades (FGV, 2022). Quanto ao espectro social, há a fragilização da ordem social que é fragmentada pela abrupta ruptura do cotidiano gerando ondas de stress e desentendimentos e favorecendo principalmente a insurgência de casos de violência doméstica e sexuais. Por fim cabe ressaltar que as atingidas relatam o abalo psicológico adquirido pela preocupação com o futuro e com a perda de perspectiva de vida que favorecem o desenvolvimento de doenças como depressão e ansiedade (FGV, 2022). Conclusão: Em síntese, as desigualdades de gênero intensificam os impactos de desastres ambientais, configurando uma expressiva injustiça climática que dificulta a recuperação da comunidade feminina atingida em Mariana. A preexistente vulnerabilidade econômica e a desvalorização do trabalho feminino contribuíram para que essas mulheres fossem marginalizadas nos processos de reparação e assistência, com menor participação no cadastramento e dificuldades significativas no acesso a auxílios e indenizações. Adicionalmente, a sobrecarga de responsabilidades domésticas e o aumento da violência representam desafios adicionais. Nesse contexto, torna-se imperativo que as instituições relevantes direcionem maior atenção e recursos às necessidades específicas das mulheres em situações de desastre. Essa abordagem é fundamental para evitar que a desigualdade de gênero se manifeste como um fator agravante dos impactos, assegurando que os processos de recuperação sejam equitativos e que os direitos dessas mulheres sejam integralmente respeitados, mitigando assim a institucionalização de novas formas de violência.

Biografia do Autor

Bruna Angela Branchi, PUC-Campinas – Campinas

Doutora em Economia Política, professora PUC-Campinas – Campinas/SP. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5312-286X

Referências

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Publicado

2025-05-28